Doença celíaca: a afecção com múltiplas faces
Pratesi R e Gandolfi L
Jornal de Pediatria - Vol. 81, Nº5, 2005 357
Sem diagnóstico por prolongados períodos de tempo. Estudos indicam que o prazo para se chegar ao diagnóstico definitivo de DC pode ser extremamente prolongado, podendo ser superior a 10 anos. Esse fato constitui-se em exemplo da desnecessária demora em se alcançar o diagnóstico. Os pacientes enfocados no presente estudo podem ser considerados um exemplo da excessiva demora em se alcançar um diagnóstico definitivo de DC. Apesar de portadores de SD constituírem um reconhecido grupo de risco para a coexistência de DC e os cinco pacientes EMA-IgA positivos já terem idades compreendidas entre 6 e 18 anos, nenhum tinha sido previamente diagnosticado como sendo portador da doença. A prevalência de DC em populações européias ou de ancestralidade européia varia entre 0,3 a 1%, muitos casos provavelmente permanecendo sem diagnóstico por prolongados períodos de tempo6. No Brasil, os dados de prevalência disponíveis são ainda escassos, mas é provável que a prevalência em nosso país não esteja muito afastada das prevalências encontradas no Velho Mundo. Em um primeiro rastreamento de casos de DC no Brasil, efetuado entre doadores de sangue, Gandolfi et al. encontraram uma prevalência de 1:681 (0.14%), mas ela
não deve corresponder à real prevalência da população brasileira, já que a maioria de doadores de sangue testados era constituída por homens, presumivelmente sadios e sem anemia (sabe-se que a DC é mais freqüente em mulheres, numa proporção de 2:1, e a anemia é um dos seus sintomas mais freqüentes). Em estudo de prevalência mais recente, que tem o viés de ter sido efetuado em grupo de usuários de laboratório de análises clínicas em hospital geral, apesar de terem sido excluídos pacientes com queixas gastroentéricas, a prevalência encontrada em crianças foi de 1:185 (0,54%)8. Esses estudos levam a crer que a prevalência da DC no Brasil, se não for similar à encontrada na Europa, aproxima-se em muito dela. A DC pode ser considerada, mundialmente, como sendo um problema de saúde pública, principalmente devido à alta prevalência, freqüente associação com morbidade variável e não-específica e, em longo prazo, à probabilidade aumentada de aparecimento de complicações graves, principalmente osteoporose e doenças malignas do trato gastroentérico.
A DC é uma doença auto-imune que pode potencialmente afetar qualquer órgão, e não tão somente o trato
gastroentérico, como previamente se supunha. A sua eclosão e o aparecimento dos primeiros sintomas podem se dar
em qualquer idade. Como apropriadamente apontado no presente estudo, a forma clássica da doença, com sintomatologia diretamente atribuível à má-absorção, é presentemente observada numa minoria de pacientes. A ampla
gama de possíveis sintomas varia consideravelmente entre indivíduos, inclusive no mesmo indivíduo em diferentes fases da doença, o que sobremaneira dificulta o diagnóstico. A DC não tratada manifesta-se, freqüentemente, de forma
monossintomática, através de anemia resistente ao tratamento, dermatite herpetiforme, que pode ser considerada a expressão dermatológica da doença, menarca tardia e menopausa precoce, infertilidade, abortos de repetição, hipertransaminasemia, depressão, sintomatologia neurológica progressiva, principalmente ataxia e epilepsia associadas a calcificações cerebrais, osteoporose e hipoplasia do esmalte dentário. Expressiva parcela de pacientes, principalmente os identificados em estudos de rastreamento, relatam, antes do diagnóstico, um indefinível mal-estar geral, que aceitam como seu estado normal, apresentando nítida melhora após a instituição da dieta isenta de glúten.
A crescente importância da DC como problema de saúde pública, as dificuldades inerentes a seu diagnóstico, muitas vezes dificultado pela diversidade e nãoespecificidade de sua expressão clínica muito freqüentemente alheia ao sistema gastroentérico, sua progressiva gravidade se não diagnosticada a tempo e a existência de tratamento efetivo através de dieta isenta de glúten levantaram a controversa questão da validade da instituição de rastreamento sistemático da população geral9. O principal argumento levantado pelos que advogam essa
medida é o da potencialidade da DC para o aparecimento de complicações graves e o de que a prevalência da DC de
longe excede a prevalência de outras doenças para as quais já existem programas rotineiros de rastreamento, como é o caso do hipotireoidismo congênito, fenilcetonúria e deficiência auditiva congênita.
Essa medida é evidentemente desaconselhável, e mesmo inexeqüível em nosso meio, pelo menos presentemente, não somente pelos recursos exigidos, como também porque testes sorológicos negativos em indivíduos geneticamente predispostos não afastam a possibilidade de futuro surgimento da doença. Por sinal, os autores do estudo em foco muito apropriadamente recomendam o seguimento e a repetição dos testes sorológicos a cada 2 anos em seus pacientes com SD, devido à possibilidade de eclosão futura da DC. Em conclusão, para quais grupos de risco a aplicação sistemática de testes sorológicos está indicada? Evidentemente, os testes são obrigatórios em adultos e crianças com a forma clássica da doença, caracterizada principalmente por diarréia crônica, flatulência, distensão abdominal e perda de peso. Um segundo grupo de risco importante, para o qual tanto os testes quanto atento seguimento estão indicados, são os parentes de celíacos. Nestes, a prevalência de DC pode chegar a 18%10. Testes sorológicos também são necessários nas já citadas síndromes genéticas: SD, síndrome de Turner e síndrome de Williams. São indicados em pacientes com outras doenças auto-imunes, principalmente diabetes tipo I, síndrome de Sjögren e tireoidite. São também indicados em pacientes com alterações neurológicas sem diagnóstico definido, principalmente ataxia e epilepsias de difícil controle associadas à calcificações cerebrais, além de pacientes com osteopenia/osteoporose e em portadores de dermatite herpetiforme. São aconselháveis, a critério clínico, em pacientes freqüentemente monossintom áticos, que apresentam sintomas não-clássicos, tais como dores articulares, estomatites aftosas freqüentes, constipação crônica, defeitos do esmalte dentário, hepatite crônica ou hipertransaminasemia persistente, anemia ferropriva resistente ao tratamento, menarca tardia ou menopausa precoce, infertilidade sem causa aparente e baixa estatura. Em conclusão, o diagnóstico da DC depende, principalmente, de sua suspeita, mesmo e, acima de tudo, na ausência do quadro clínico clássico, uma vez que, atualmente, formas atípicas, monossintomáticas ou mesmo silenciosas são as mais freqüentemente encontradas.
Fonte: http://www.scielo.org/php/index.php